Espetáculo do Tablado SP parte da pesquisa do autor sobre a história do extrativismo na região e de reflexões a partir da peça ‘Boca de Ouro’, de Nelson Rodrigues.
A questão das muitas formas de violência envolvidas na mineração e no garimpo predatório do ouro em solo amazônico é tema de Serra Pelada, com texto e direção do premiado Alexandre Dal Farra. O novo trabalho do coletivo Tablado SP estreia no Teatro de Arena. No elenco, estão Gilda Nomacce, Flow Kontouriotis, Monalisa Silva e Victor Salomão.
O espetáculo nasce de mais de dois anos de pesquisa do autor sobre a dimensão do garimpo e da mineração na construção da modernidade, das viagens feitas por ele e o cineasta Joaquim Castro para a região e de uma série de reflexões a partir da peça “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues.

Nessas expedições, Dal Farra e Castro fizeram muitos registros em imagem e coletaram vários depoimentos de pessoas que participaram do auge do garimpo de ouro na região e ainda vivem lá. No entanto, essas imagens não aparecem no espetáculo. Ao menos, não diretamente.
“Eu tinha estudado bastante o assunto, mas eu quis ir pra lá entrar em contato com esse universo. A Serra Pelada não é apenas onde foi o maior garimpo a céu aberto do mundo, mas fica na mesma região onde aconteceu a Guerrilha do Araguaia, o movimento de resistência contra a Ditadura Militar, e depois onde se deu o massacre de Eldorado dos Carajás, quando foram mortos 21 integrantes do MST. Então, conhecer essa região sempre me interessou muito”, revela o autor.
O garimpo na região da Serra Pelada teve início em 1979, quando foram encontradas as primeiras pepitas de ouro de aluvião. Em pouco tempo, milhares de garimpeiros migraram para o local. E, por conta da pressão de grandes empresas mineradoras como a Rio Doce Geologia e Mineração (DOCEGEO), em 1980, a Ditadura Militar enviou à região, como interventor o Major Sebastião Curió.
A principal realização anterior de Curió havia sido justamente a eliminação da Guerrilha do Araguaia, movimento liderado por Osvaldo Orlando da Costa, garimpeiro, comunista e militante do PC do B, que, ao que consta, sonhava em construir um estado paralelo e socialista financiado com o ouro extraído em outra região ao longo do rio Araguaia, que ficava a cerca de 100km da Serra Pelada.
No entanto, num momento de abertura política, a Serra Pelada tornou-se quase que uma espécie de estado paralelo, pertencente, não à esquerda, mas aos militares. As duas pontas se encontravam na montanha dourada que, ao longo de menos de dez anos, foi transformada, por meio da ação direta de milhares de mãos munidas de pás e enxadas, numa imensa cratera.
A dramaturgia

O espetáculo, segundo Dal Farra, é dividido em duas partes. “A primeira é um pouco essa tentativa de imaginar as pessoas vivendo naquele lugar. De pensar como era aquela região nessa época, desde o confronto entre os guerrilheiros do Araguaia e do Major Curió, até a criação do garimpo, o que significava estar ali no passado e o que eu consigo captar disso tudo hoje”, revela.
Neste momento, não há uma definição muito clara de personagens. O elenco, formado por pessoas bem diversas – um homem trans, um homem negro, uma mulher negra e uma mulher branca -, usa uma balaclava para esconder os seus rostos.
“Isso se desdobra na segunda parte, que é uma ficcionalização dessa viagem de pesquisa, essas pessoas decidem não voltar e subir mais na direção dos garimpos atuais. É uma tentativa de se aproximar do que está rolando agora e do que vemos nas notícias atuais do garimpo no rio Xingu, em cidades que não são distantes da Serra Pelada”, acrescenta.
Nessa ficcionalização, em plena época de Natal, uma equipe de documentaristas – que poderiam facilmente estar fazendo uma peça de teatro – espera em um quarto de hotel o contato de garimpeiros. Sem resposta, eles vivem momentos de aflição, paranóia e medo já que os cinegrafistas sabem da conexão desses mineradores com o crime organizado.

“É nesta parte que luzes fortes iluminam o Teatro de Arena quase como uma escavação. Os atores tiram suas balaclavas e mostram seus rostos,mas todos representam homens. Queremos trazer para a peça uma discussão sobre essa comunidade masculina que identificamos nas pesquisas sobre a Serra Pelada, e do quanto isso está restrito a universos como o do garimpo”, reflete o autor.
Além disso, ao longo de toda a obra, há um diálogo com a peça “Boca de Ouro”. Por exemplo, na primeira cena da peça de Nelson Rodrigues, o bicheiro pede a um dentista que extraia todos os seus dentes e introduza no local uma arcada dentária feita inteiramente de ouro. Essa dupla violência, contra o próprio corpo e envolvida no próprio garimpo predatório do ouro, remete à lógica extrativista ou neoextrativista que estrutura não só a sociedade brasileira, como a própria ordem mundial.
Além disso, Serra Pelada propõe uma reflexão sobre a violência implícita no trabalho dos personagens documentaristas que, por mais conscientes que sejam, também estão ali tentando garimpar na pesquisa, e em si mesmos, coisas que possam utilizar na sua obra.. Nisso, se aproximam de Caveirinha (da obra de Nelson Rodrigues), o repórter sensacionalista que entrevista a viúva de Boca de Ouro para traçar um perfil póstumo do bicheiro e, assim, constrói uma imagem contraditória dessa figura.
“Então, de certa forma, a peça do Nelson também fala dessa tentativa de entender um ‘outro’. No nosso caso, tentamos entender esse garimpeiro – tanto o antigo quanto o atual -, mas nunca conseguiremos chegar totalmente a ele. Talvez possamos apenas cogitar que talvez ele não seja tão distante assim de nós como gostaríamos de imaginar”, explica o dramaturgo.
Ficha Técnica
Direção e texto: Alexandre Dal Farra
Elenco: Gilda Nomacce, Flow Kontouriotis, Monalisa Silva, Victor Salomão.
Direção de movimento: Lucas Brandão
Figurino, cenário e direção de arte: João Marcos de Almeida
Luz: Lucas Brandão
Produção: Leo Devitto e Lud Picosque – Corpo Rastreado
SERRA PELADA

Temporada: De 13 de Fevereiro a 23 de Março*
Horário: Quinta a Sábado, às 20h | Domingo, às 19h
Local: Rua Dr. Teodoro Baima, 94, Vila Buarque
Ingressos: Gratuito | Retirar na bilheteria 01 hora antes do espetáculo
Classificação: 14 anos
Duração: 90 minutos
*Não haverá sessão nos dias 22, 23, 27 e 28 de Fevereiro e 01, 02, 08 e 09 de Março.
Sessões Extras – Dias 18 e 19 de Março às 15h
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