Depois de uma curta e concorrida temporada no Porão do CCSP – Centro Cultural São Paulo – a peça A Bailarina Fantasma volta em cartaz para quatro únicas apresentações no Ateliê do encenador Wagner Antônio, localizado no 1º andar do Espaço 28.
Na peça-instalação, a bailarina brasileira Verônica Santos trava um diálogo íntimo com a dramaturga, Dione Carlos. Diante do público, elas elaboram um plano de vingança. Com dramaturgia de Dione Carlos, encenação de Wagner Antônio e idealização e produção de Fernando Gimenes, o espetáculo revela os bastidores do universo da dança clássica e da escultura que virou um marco na história da arte moderna.
Partindo da polêmica escultura ‘A Bailarina de 14 anos’, do pintor e escultor francês Edgar Degas (1834-1917), e das memórias da bailarina brasileira Verônica Santos, Dione Carlos criou a dramaturgia da peça-instalação “A Bailarina Fantasma”. A temporada de estreia acontece no Espaço Cênico Ademar Guerra, localizado no porão do CCSP – Centro Cultural São Paulo.
A peça destaca as violências físicas e simbólicas sofridas por Verônica em seu processo de formação em dança, bem como as tentativas de apagamento de sua visibilidade ao longo de sua carreira como bailarina clássica negra. A partir de um pensamento curatorial articulado por Fernando Gimenes, idealizador do projeto, foram reunidos profissionais com fortes traços autorais como Dione Carlos na dramaturgia, Wagner Antônio na encenação, Natália Nery na trilha sonora original executada ao vivo, além de Verônica Santos. O espetáculo revela, em uma peça-instalação, os bastidores do universo da dança clássica e da escultura que virou um marco na história da arte moderna.
“Com a mediação artística-psicanalítica de Rafael Costa no levantamento da minha biografia e de materiais para a composição da nossa dramaturgia, acessei muitas das minhas memórias. Voltamos para a minha infância e avançamos até o momento presente em que me encontro na melhor forma de me expressar”, conta Verônica.
As esculturas polêmicas de Degas
Degas tinha um grande interesse por bailarinas, representadas em mais da metade de suas duas mil obras, principalmente retratando membros do corpo de balé da Ópera de Paris. Ele pintava cenas no palco, ensaios e momentos de descanso. Na Ópera de Paris, Degas conheceu Marie van Goethem, uma estudante de balé de 13 anos, que serviu de modelo para a escultura “A Bailarina de 14 Anos”, a única exposta por Degas em vida, em 1881. A obra recebeu críticas negativas, com o público associando sua aparência a algo animalesco e estranho, semelhante a um boneco de cera.
Degas inovou ao misturar materiais como cera, cabelo real e tecidos, mostrando uma visão artística à frente de seu tempo. A escultura, considerada uma de suas mais famosas e influentes, teve 28 cópias em bronze feitas a partir do molde original e estão em importantes museus ao redor do mundo, como o Museu d’Orsay, em Paris, e o MASP, em São Paulo.
Sobre as réplicas, como elas são feitas em bronze, um material que escurece quando exposto à ação do tempo, muitas pessoas pensam que a bailarina retratada era uma jovem negra. O que ao longo dos anos gerou diversos atos de cunho racista sobre a obra, chegando a nomearem como ‘A Pequena Macaca de 14 anos’, conta Fernando Gimenes, idealizador do projeto.
A perspectiva política, social e crítica na obra
As vivências de Verônica fundem-se ao que pode ser estudado e também visto na escultura de Degas. De acordo com Fernando Gimenes, idealizador do projeto, se em um primeiro momento a garota retratada parece estar em uma simples posição de descanso, ao olharmos mais de perto, é possível enxergar todo o sofrimento e a dificuldade dela em sustentar aquela postura. Esta análise foi ponto central na exposição “Degas”, realizada pelo MASP em 2020, quando além das esculturas expostas, a artista brasileira Sofia Borges produziu fotografias em grande escala a partir das esculturas do artista francês, com destaque para a “Bailarina de 14 anos”. O resultado desse trabalho revelou não o rosto e as posições das modelos, mas os sentidos através do foco na expressão dos olhos e movimento dos músculos do corpo. Nas fotos, a delicadeza pela qual a obra ficou conhecida na arte ocidental dos séculos XIX e XX dá lugar à sombra captada pela lente, que aumenta a tensão do rosto, e as perspectivas – política, social e crítica – até então ocultas.
Se o meio do balé é cristalizado por imagens doces como a da escultura de Degas, a trajetória de Verônica foi marcada pela busca incessante por encontrar uma linguagem que a representasse. “Eu venho de uma periferia, de uma família preta, pobre e que tem todas as suas histórias dentro dessa subjetividade e dessa intersecção que envolve a nossa cor. Inclusive, fui uma criança que por anos frequentou as salas e os espaços de balé durante quatro, cinco horas por dia, porque meus pais entendiam que essa talvez fosse uma possibilidade de educação e de sociabilização”, argumenta. Entretanto, sua formação foi desafiadora. “Eu aprendi duas técnicas específicas, uma francesa e uma russa, que nada têm a ver com um corpo negro ou tipicamente brasileiro. Depois, fui conhecer o trabalho das norte-americanas, incluindo o sapateado. Mas eu sempre sentia que aqueles ambientes não me queriam”, completa.
Para Dione Carlos, dramaturga de A Bailarina Fantasma, o espetáculo é um ritual de libertação do corpo. “Queremos mostrar uma mulher renascendo. E como tenho investigado o poder do erotismo, principalmente quando falamos em corpos subalternizados, tenho construído uma espécie de quilombo-erótico-místico nos meus projetos”, explica a dramaturga. Verônica e Dione dialogam e planejam uma vingança, mas contra o colonialismo, contra o sistema, contra o racismo. É um plano de vingança subjetivo e poético, compartilhado com a plateia.
Sobre a encenação
O diretor estruturou a obra num estudo das materialidades cênicas propondo uma trajetória que parte do elemento bronze, passando pela cera e que retorna à carne. “Estamos propondo uma volta à carne. A Verônica está esculpindo o próprio espaço e o próprio corpo aos olhos do público. Na verdade, ela esculpe as próprias sombras para voltar a elas depois”, detalha Wagner Antônio.
E o público acompanhará todo esse processo sob uma perspectiva única e autônoma. Não haverá um local pré-determinado para se sentar. A intérprete e a equipe técnica performativa acompanharão o público por um ambiente imersivo instalado no porão do CCSP. Enquanto as pessoas observam toda a ação, seus sentidos também estarão sendo esculpidos ou lapidados.
Quem cria a atmosfera sonora é a pianista Natália Nery. Tocando um piano elétrico e inspirada pelo estilo experimental de John Cage, ela executa composições originais e canções que têm referências em obras clássicas como “O Lago dos Cisnes” e inspirações em canções icônicas de Nina Simone. Ao mesmo tempo, a voz de Dione ecoa pelo espaço cênico, tendo as peças radiofônicas como mais uma inspiração para a criação do espetáculo.
“Este trabalho é uma desobediência poética, uma insurgência. Eu ficava pensando que o verbo se fez carne e rezava para que a carne se fizesse verbo e fosse dançar. Esse verbo deveria nos recordar de que fomos feitos para o movimento. Quer dizer, para mim, essa bailarina fantasma também é essa memória corporal da primeira diáspora da humanidade, que foi a saída de África. Com esse espetáculo eu gostaria de resgatar essa nossa vocação para a dança”, completa Dione.
Programação complementar
Para ampliar os assuntos trazidos em A Bailarina Fantasma, haverá uma programação extra, com bate-papos e oficinas.
Após as apresentações dos dias 22 e 23 de novembro, a equipe envolvida no espetáculo promoverá encontros públicos, para expandir referências e pesquisas para pessoas que se interessem pelo tema da interseccionalidade de linguagens artísticas e das artes visuais para criação de obras teatrais inéditas.
Na sexta-feira (22/11), acontece a conversa “Teatro das Matérias”, com a artista plástica, escultora e artista intermídia Laura Vinci, sobre sua pesquisa e obra, recentemente lançada em livro, homônimo, pela editora Nara Roesler.
No sábado (23/11), o artista visual Ramo participa do encontro “Ramificar e Vilanizar”, em que trata do conceito de “vilanismo” e de sua obra e pesquisa para a criação da exposição “Ramificar”. Ramo é vilão, artista visual, educador e gestor cultural.
Nos dias 23 e 24 de novembro, (sábado e domingo), das 14h às 17h, acontece a oficina “Por uma Prática Curatorial Mediadora e Colaborativa em Artes Cênicas”, com Felipe de Assis, artista da cena, Mestre em Artes Cênicas pela UFBA, pesquisador e curador do Centro Cultural Futuros – Arte e Tecnologia (RJ) e do Festival Internacional FIAC BAHIA (BA).
As inscrições são gratuitas e os encontros contarão com acessibilidade em Libras – Língua Brasileira de Sinais.
Ficha Técnica:
Idealização e Direção de Produção: Fernando Gimenes | Produção: Plataforma – Estúdio de Produção Cultural | Atuação: Verônica Santos | Dramaturgia: Dione Carlos | Pianista: Natália Nery | Encenação e instalação cênica: Wagner Antônio | Diretora Assistente: Isabel Wolfenson | Mediação Artística-Psicanalítica: Rafael Costa | Equipe técnica performativa: Laysla Loysle, Ijur Sanso, Lucas JP Santos, Camila Refinetti, Denis Kageyama, Guilherme Zomer, Marina Meyer | Acessibilidade: Sina – Acessibilidade e Produção | Designer Gráfico: Murilo Thaveira | Fotos: Helton Nóbrega e Noelia Nájera | Redes Sociais: Jorge Ferreira | Fisioterapeuta: Claudia Carahyba | Professora de balé: Aurea Ferreira | Assistente de Produção: Bruno Ribeiro | Técnico de Gravação em Áudio: Fabrício Zava | Assessoria de Imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério
A BAILARINA FANTASMA
Temporada: De 21 a 24 de Novembro
Horário: Quinta a domingo, às 20h
Local: Rua Anhaia, 987 – Bom Retiro – 1º Andar
Ingresso: Gratuito (Reservas a partir do dia 14/11 pelo Instagram @abailarinafantasmateatro)
Duração: 75 minutos
Classificação: 18 anos
Acessibilidade: Todas as sessões contarão com acessibilidade em Libras – Língua Brasileira de Sinais.
Encontros públicos e oficina
Teatro das Matérias, com a artista plástica Laura Vinci.
Data: 22 de novembro de 2024, sexta, depois da sessão
A relação com o teatro, iniciada em 1998 no Teatro Oficina, tornou-se um lugar central de experimentação e exploração de temas já abordados há alguns anos por ela nas artes visuais, ampliando assim, o discurso e a potência de seu trabalho.
Ramificar e Vilanizar, com o artista visual Ramo.
Data: 23 de novembro de 2024, sábado, depois da sessão
A exposição Ramificar apresenta um artista atento às questões afrofuturistas e quilombistas, consciente dos estigmas que o racismo impõe a corpos negros. “Vilanizar” como contragolpe ao enquadramento dos fantasmas da masculinidade hegemônica que ditam o que ser e aos poucos matam.
Oficina – Por uma Prática Curatorial Mediadora e Colaborativa em Artes Cênicas, com Felipe de Assis
Datas: 23 e 24 de novembro de 2024, sábado e domingo, das 14h às 17h.
As noções de mediação e colaboração, oriundas respectivamente da curadoria em artes visuais e das práticas artísticas em artes cênicas, podem contribuir à formulação de uma prática curatorial em artes cênicas. A construção de uma prática curatorial atenta ao pressuposto da emancipação é um exercício de alteridades, deslocamentos constantes entre as posições usualmente estabelecidas pelos envolvidos, para a produção de um contexto tão performativo quanto o teatro com o qual dialoga.
Local: 1º Andar do Espaço 28 – Rua Anhaia, 987, Bom Retiro, São Paulo, SP. Acessos gratuitos, com reservas a partir do dia 14/11, pelo Instagram @abailarinafantasmateatro – Vagas limitadas. Haverá tradução de LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais
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