Em pleno ABC Paulista, palco de conquistas operárias e da esquerda, conhecemos a trajetória decadente de um pequeno burguês em TRANSE – Ato 1, estrelado por Salloma Salomão e escrito e dirigido por Marcio Castro. O espetáculo tem uma temporada no Sesc Belenzinho.
A peça foi lida em um ciclo de leituras dramáticas e publicada em livro em 2018 e 2019, na capital e região do ABC – a obra, inclusive, foi distribuída nas cidades angolanas de Luanda, Cazenga e Benguela por meio do intercâmbio cultural Brasil – Angola/Projeto Raízes. Em 2024, o projeto foi contemplado pela Lei Paulo Gustavo de Santo André e fez uma abertura de processo nesta cidade.
A montagem faz parte do Projeto TRANSE, que também conta com um Ateliê Aberto de Criação, no qual os artistas revelam aspectos do processo criativo ao longo de quatro oficinas de direção e dramaturgia, cenografia, figurino e dramaturgias musicais. As atividades ocorrem no Sesc Belenzinho no mesmo período em que a peça fica em cartaz por lá.
A trama narra a história de Ricardo, um pequeno burguês decadente de Santo André, herdeiro de diretores da General Electric. Ao levar um tiro, o personagem revive em flashback sua ignóbil vida. A covardia e mesquinhez desse homem são desnudadas a partir de imagens e lembranças reais de movimentos de esquerda e de imagens de Paulo Martins, personagem do filme “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha.
Em cena, Ricardo é visto através de uma janela, uma grande estrutura cênica móvel que gira no palco ao longo do espetáculo, sugerindo mudanças de perspectiva e ângulos, além de provocar o voyeurismo do espectador. Permeado por um narrador disparador de cenas e contrarregras, que seriam seus empregados (e que agem também como fantasmas de sua cabeça), a montagem conta com uma trilha sonora tocada ao vivo, que favorece esse transe do protagonista.
“A estrutura técnica do trabalho é erigida através de refletores, expostos em tripés, sistemas de som aparentes e a presença dos técnicos de frente para o público. A cenografia é modificada pelos contrarregras composta pela própria equipe de trabalho (diretores de arte, figurinista, diretor, iluminadora, músico, técnicos de som e luz), oferecendo novos prismas sobre Ricardo, modificando os planos pelo qual podemos assistir o homem em sua rota de morte (frontal, lateral, panorâmica), tal como se constrói a fotografia de um filme, fortalecendo a ideia do Voyeur, figura conceito no trabalho, que atravessa a peça. Tudo é visto pelo público”, revela o diretor Marcio Castro.
A encenação ainda conta com luzes e projeções de imagens vindas de bazucas poéticas, objetos como lunetas feitas de tubos telefônicos e lentes; e com um figurino monocromático, criado a partir de upcycling de uniformes reais de operários da região do ABC paulista.
A cena é atravessada por escritos, diários, projeções de imagens de filmes, gravadores e fitas cassete. E o personagem central se divide em encontrar as suas memórias inscritas nestes suportes e relembrar sua vida em um contexto inebriante, construído pela ambiência musical que atravessa a perspectiva do sonho e pesadelo.
“A presença de Salloma Salomão universaliza a interpretação de um personagem branco de classe média por uma pessoa negra. É uma provocação à indesejada prática hegemônica de atores brancos interpretarem personagens diversos, enquanto aos pretos relegam-se apenas figuras secundárias ou subservientes”, reflete Castro sobre a escolha do ator.
Sobre o Memorial de Conflitos
Para a temporada no SESC, a equipe traz uma proposta de composição no espaço cênico: Um “Memorial de Conflitos”. Trata-se de uma instalação com elementos que buscam proporcionar uma imersão dos espectadores logo ao entrarem na sala, onde irão se deparar com elementos que trazem a sensação de uma fábrica e, também, da casa de Ricardo, o protagonista da peça. Nessa instalação, além dos objetos cenográficos que remetem à indústria e seus patrimônios de exploração e controle dos operários (chapeiras e relógios de ponto, bandejas de refeitórios e placas alusivas à sinalização de perigos iminentes), também teremos a presença de reproduções de materiais referentes à lutas operárias, como faixas e cartazes de mobilização à época, fotos de momentos históricos, além de registros de luta contra a ditadura e pela redemocratização do país. Além disso, as oficinas do ateliê aberto serão desenvolvidas nesse espaço, em consonância com a experiência do projeto “Cenas Centrífugas” realizada no SESC Santo André no ano de 2019, que tiveram a presença tanto de Julio Dojcsar e Marcio Castro.
Assim como a criação deste espetáculo se deu numa estrutura de ateliê aberto, tanto o público do espetáculo como das oficinas poderão vivenciar a experiência de imersão entre essas duas instâncias, a do espetáculo e das oficinas: experimentar a construção de um figurino e testá-la no espaço cênico. A música criada na oficina de dramaturgias sonoras ecoando pelo espaço cênico de representação, entre outras múltiplas possibilidades. Por fim, busca-se modificar a orientação da plateia/palco, aproximar a arquibancada do proscênio, aumentar em altura e largura a janela, assim como as tapadeiras de fundo que também são telas de projeção. O recorte da luz, criado por Camila Andrade, também trará a ocupação do espaço ao evidenciar os refletores como elementos cênicos, manipulados durante a cena pelos contrarregras.
Concluindo, ainda que o núcleo da cena esteja focado essencialmente numa sala de estar configurada como cenário de gabinete, tem todo um entorno que evidencia o backstage de uma gravação de um filme, algo que se aproxima do expediente do cinema e do teatro épico.
Sobre o Ateliê Aberto de Criação
Você já viu uma peça de teatro pelo lado de dentro? Antes da cortina se abrir e, do escuro, surgirem as luzes do palco, existe um elaborado processo criativo desenvolvido por artistas de áreas diversas, como o audiovisual, a música, a performatividade e a dramaticidade. As perguntas “Como se monta um espetáculo? Como se chega a uma cena final? Quem faz o quê no teatro? De onde vem essa trilha sonora?” são reflexões que movimentam e impulsionam este ateliê.
“Ao fazermos um paralelo com a ideia fabril e de divisão do trabalho, observar o processo seria mostrar cada uma das seções em que os trabalhadores exercem separadamente sua função, para a formação de um produto final. Porém, no teatro, é tudo junto. Todas as funções se tocam, se transformam umas às outras, conversam. O trabalhador artista tem noção total do valor da sua função para a obra total. E a ideia de termos um Ateliê Aberto de Criação é permitir aos fruidores experimentar esse processo”, explica o diretor.
As oficinas do Projeto Transe têm como base o espetáculo TRANSE – ATO 1, apresentado como estreia no Sesc Belenzinho. Com o intuito de fortalecer a experiência de criação das obras pelos fruidores, o Ateliê aberto de criação propõe desvelar as diversas práticas artísticas desenvolvidas para o ensaio e montagem do espetáculo. Dentre essas vertentes, a pesquisa de interpretação, de dramaturgia, direção de arte, cenografia, figurinos, projeções analógicas, criações musicais e dramaturgias do som. Pegando de empréstimo o que Patrice Pavis – professor e pesquisador em semiologia no teatro – denominou de “desmontagem”, a ideia é descortinar os bastidores e permitir que as pessoas tenham contato com aquilo que antecede a obra.
Ficha Técnica
Concepção do Projeto: Marcio Castro
Direção e Dramaturgia: Marcio Castro
Atuação: Salloma Salomão
Direção de Arte: Julio Dojcsar
Cenografia: Julio Dojcsar e Cauê Maia
Projeções Analógicas e Bazucas Poéticas: Cauê Maia
Figurinos: Renata Régis
Direção Musical: Adonai de Assis
Dramaturgia Sonora: Adonai de Assis e Salloma Salomão
Concepção e operação de luz: Camila Andrade
Contrarregras – Operários: Julio Dojcsar, Renata Régis, Cauê Maia, Marcio Castro, Camila Andrade e Adonai de Assis
Design Gráfico: Murilo Thaveira
Assessoria de imprensa: Pombo Correio Comunicação
Direção de Produção e Produção Executiva: Ana Zumas
Técnico de som: Jess Melo e Jo Coutinho (stand in)
Libras: Mãos de Fada
TRANSE – ATO 1
Temporada: De 03 de Outubro a 03 de Novembro*
Horário: Sextas e Sábados, às 20h | Domingos, às 18h30
Local: Rua Padre Adelino, 1000 – Belenzinho
Ingressos: R$ 50,00 (inteira) | R$ 25,00 (meia-entrada) | R$ 15,00 (credencial plena) | Compre aqui
Classificação: 16 anos
Duração: 80 minutos
Acessibilidade: teatro acessível a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida
*Sessões extras: Dias 03 e 31 de Outubro, às 20h | Dias 12 de Outubro e 02 de de Novembro, sessões às 18h30 | Dias 06 e 27 de Outubro não haverá apresentações, por conta das eleições
Programação Oficinas do Ateliê Aberto de Criação:
Oficina Dramaturgia, História e Interpretação Teatral, com Marcio Castro
Descrição: O intuito desta oficina é, através de atividades práticas, desenvolver um percurso de pesquisa em seus encontros, que reverberem na relação dos participantes com suas perspectivas históricas pessoais e coletivas, e o quanto essa relação pode estar presente em suas elaborações estéticas. Cada encontro trará como foco um aspecto de desenvolvimento. E a obra TRANSE aparece como material a ser destrinchado pelo coletivo, como deflagrador inicial, para posteriormente se desenvolver em práticas individuais e coletivas dos participantes. TRANSE é um disparador que se coloca como material a ser estudado, criticado e reelaborado, inclusive.
Quando: 9 e 11 de outubro, das 14h às 17h
Inscrições: Entrega de senhas 30 minutos antes
Oficina Cenografia – Inventando o espaço, com Julio Dojcsar e André Capuano
Descrição: Poesias urbanas nas práticas da redução de danos. Depois de passar por longo período em uma zona de guerra humana, como potencializar o espaço de cena para dar conta de histórias de vida? Nesta oficina, vamos desconstruir o processo de desenvolvimento do espetáculo TRANSE – Ato 1, apresentando conceitos de encenação e compartilhando técnicas utilizadas.
Quando: 16 e 18 de outubro, das 14h às 17h
Inscrições: Entrega de senhas 30 minutos antes
Oficina Figurinos, reconstrução e “roupa de trabalho” na cena, com Renata Régis
Descrição: Pensando que uniformes são peças de roupas padronizadas, que visam facilitar a identificação de um grupo, Renata Régis no figurino de TRANSE – Ato 1 desconstrói este objetivo. O uniforme da metalurgia, usado pelos contrarregras, se funde aos ternos e a pinturas, criando um terceiro vestir único, que carrega uma identidade e um objetivo claro da despadronização. Sendo assim, a oficina propõe que os uniformes tradicionais da metalurgia na cor cinza, sejam customizados com pinturas com stencil, por cada participante com o objetivo de mudar a visão de padronização, e identificação para qual foi criado, tornando-os únicos e com identidade. Ela também propõe a costura de ecobags no mesmo tecido dos uniformes – tecido brim em tons de cinza, onde também haverá customização com pinturas em stencil. Os participantes poderão levar seus uniformes e bolsas para casa.
Quando: 23 e 25 de outubro, das 14h às 17h
Inscrições: Entrega de senhas 30 minutos antes
Oficina Dramaturgias Musicais, com Salloma Salomão e Adonai Assis
Descrição: Oficina de dramaturgia musical para cena autoral. Uma construção musical que esteja organicamente relacionada à elaboração cênica coletiva. Os objetos fônicos são aqueles disponibilizados pelo executantes, quais sejam: voz, flauta e tecnologias do disco físico e música digital, samplers e estética de discotecagem. Ruídos, barulhos de máquinas e sonoridades vindas de simulacros. Salloma vem da cena musical surgida de bandas de garagem dos anos 1980 e Adonai criado nas faixas de estética musical do Hip Hop, samba e música eletrônica. Vertentes de música negra que se encontram para pensar uma dramaturgia musical para uma cena autoral.
Quando: 30 de outubro e 1º de novembro, das 14h às 17h
Inscrições: Entrega de senhas 30 minutos antes
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